No preâmbulo do primeiro mandamento Deus se identifica. O segundo mandamento é muito próximo do primeiro, ambos são de ordem espiritual e afirmam a existência de um Deus vivo, o único que deve ser adorado. Aqui Javé proíbe a adoração aos ídolos e o culto a qualquer imagem de escultura ou de pintura como objeto de adoração. É nesta forma de idolatria que o presente capítulo pretende focar.
Os patriarcas do Gênesis e os israelitas do deserto sabiam muito pouco sobre os atributos de Deus. A revelação divina aconteceu de forma gradual ao longo dos séculos, até a manifestação do Filho de Deus (Hb 1.1). Os dois primeiros mandamentos do Decálogo são os que maior impacto causaram em Israel. Deus é espírito e invisível (Jo 4.24; Cl 1.15; 1 Tm 1.17) e hoje qualquer cristão sabe disso. Essa verdade é declarada na Confissão de Westminster. No entanto, foi o próprio Deus que se revelou a si mesmo sobre o seu ser e a sua natureza e nesses mandamentos temos o esboço dessa doutrina.
No primeiro mandamento, Javé se identifica ao seu povo como o Deus soberano que remiu a Israel da escravidão do Egito. Aqui e no segundo mandamento, Deus revela a sua espiritualidade e ordena que somente ele deve ser adorado. Javé proíbe o uso de imagem e de qualquer representação, semelhança ou figura do próprio Deus na adoração. Essa proibição se estende também a toda e qualquer divindade falsa dos pagãos.
OS ÍDOLOS E AS IMAGENS
A revelação do Sinai aconteceu três meses após a saída dos israelitas do Egito. Aquela geração havia nascido e vivido na terra do Nilo até aquele momento. O Egito era um dos maiores centros de idolatria do mundo. Suas imagens de escultura e seus obeliscos impressionam o espírito humano até hoje. Esse país foi o berço da civilização de Israel, e os hebreus conviveram com a cultura dos egípcios durante muito tempo, razão pela qual deviam estar bem familiarizados com suas práticas religiosas.
O profeta Jeremias menciona os obeliscos e as casas dos deuses do Egito em Heliópolis muitos séculos após a promulgação da lei: "E quebrará as estátuas de Bete-Semes, que está na terra do Egito; e as casas dos deuses do Egito queimará" (Jr 43.13). O principal templo de Heliópolis era o de Rá, deus representado por um homem com cabeça de falcão, cuja supremacia no Egito durou mais de mil anos. Segundo os egípcios, Rá era o pai de uma família de nove deuses. Implícita estava a zoolatria - adoração aos animais pois os egípcios viam neles mais que símbolos ou emblemas; eles os consideravam receptáculos das formas do poder divino.
Bete-Semes aqui é Heliópolis, uma antiga cidade egípcia de Om, seu nome hebraico, e Heliópolis, seu nome grego (Gn 41.45, 50, LXX). Situa-se atualmente 16 km a noroeste do Cairo, onde se localiza o aeroporto internacional. O nome hebraico bêth shemesh significa "casa do sol", e a Septuaginta emprega hêliou póleõs, "cidade do sol" [50.13]. A Nova Tradução na Linguagem de Hoje traduz como "Heliópolis". Jeremias emprega o termo hebraico matstsêbãh32 para designar "estátua", que significa "alguma coisa colocada verticalmente, coluna, pilar, estátua". O profeta se refere aos obeliscos, que são próprios do Egito (KOEHLER & BAUMGAR- TNER, vol. 1,2001, p. 621). Trata-se de um bloco de pedra postado para fins memoriais (2 Sm 18.18) ou religiosos (2 Rs 3.2; 10.26; 18.4; 23.14; Os 10.1; Mq 5.13 [12]). Os obeliscos egípcios eram ídolose também memoriais. Essa prática era proibida em Israel (Dt 16.22).
Hoje, apenas oito desses obeliscos continuam de pé no Egito: três no templo de Carnaque (originalmente, eram dez); um no templo de Luxor (mas havia dois, o outro está na praça da Concórdia); um no Aeroporto Internacional do Cairo, trazido de Ramessés, sua localidade original; um posto em um jardim ao lado da Torre do Cairo, trazido também de Ramessés; um na praça Matariya, no centro do Cairo, trazido das ruínas do templo do sol de Heliópolis; e o último, da 12a dinastia, está em Fayum, local em que, segundo se diz, Jacó viveu com toda a família, durante a administração de José do Egito. Existem ainda mais de dez obeliscos egípcios espalhados por locais variados na Europa, Vaticano, Istambul, Londres, Paris e em Nova Iorque, nos Estados Unidos, resgatados desde os romanos a partir do ano 31 a.C.
O grande desafio de Israel era vencer a idolatria e manter a fidelidade a Javé, cumprindo o concerto do Sinai. O povo estava saindo de um contexto sociocultural completamente politeísta. Seus ancestrais lhes haviam falado sobre o Deus de Abraão, de Isaque e de Jacó, mas agora eles mesmos precisavam saber o que significava o compromisso de servir e adorar exclusivamente o Deus que os libertara da escravidão do Egito. A adoração a Javé devia ser algo completamente diferente dos rituais idólatras. O segundo mandamento declara:
Não farás para ti imagem de escultura, nem alguma semelhança do que há em cima nos céus, nem em baixo na terra, nem nas águas debaixo da terra. Não te encurvarás a elas nem as servirás; porque eu, o SENHOR, teu Deus, sou Deus zeloso, que visito a maldade dos pais nos filhos até à terceira e quarta geração daqueles que me aborrecem e faço misericórdia em milhares aos que me amam e guardam os meus mandamentos (êx 20.4-6; Dt 5.8-10).
Os dois termos hebraicos pessel e temunãh33 dizem respeito à falsa adoração. Da palavra pessel, "imagem", deriva o verbo pãssal,34 "esculpir, entalhar, lavrar" pedra ou madeira para construir (1 Rs 5.18 [32]), escrever (Êx 34.1, 4; Dt 10.1, 3) e esculpir imagem de divindades (Hc 2.18). A Septuaginta traduziu o termo por eidõlon,35 "ídolo". O termo temunãh, "forma, aparência, figura, representação, semelhança", só aparece dez vezes no Antigo Testamento (Êx20.4; Dt4.12,15,16,23,25; 5.8; Nm 12.8; Jó 4.16; Sl 17.15). Cinco vezes aparece em conexão ou paralelamente a pessel e diz respeito à proibição do uso de imagens (Êx 20.4; Dt 4.16, 23, 25; 5.8). Duas vezes é usada para esclarecer que os israelitas ouviram a voz de Javé que falava do meio do fogo no monte Sinai, mas eles só ouviram as palavras por ocasião da revelação do Sinai (Dt 4.12, 15). Três vezes é empregada de maneira independente: Moisés era o único que via a temunat YHWH,36 a "semelhança de Javé" (Nm 12.8). Deus falava com ele como alguém fala a um amigo, face a face (Êx 33.11); Elifaz usa o termo para descrever uma revelação noturna (Jó 4.16) e, num paralelismo poético, a palavra é empregada de forma metafórica numa visão de Davi (Sl 17.15).
O segundo mandamento diz que não se deve fazer imagem ou figura de tudo o "que há em cima nos céus, nem em baixo na terra, nem nas águas debaixo da terra” (Êx 20.4; Dt 5.8). Isso envolve todas as espécies de animais, aves, répteis, peixes, aves, corpos celestes, e inclui a imagem do próprio Deus (Dt 4.12-19). A menção das estátuas de macho e fêmea, "alguma escultura, semelhança de imagem, figura de macho ou de fêmea" (Dt 4.16), diz respeito às divindades masculinas e femininas. Os cananeus chamavam à madeira de pai e à pedra de mãe (Jr 2.27). A madeira era o símbolo da fertilidade feminina; a deusa Aserá era a mãe dos deuses; e a pedra simbolizava a fertilidade masculina na religião dos cananeus (Dt 4.28; Jr 3.9).
As espécies de animais mencionadas aqui (Dt 4.17-19) representavam os deuses na antiguidade (Ez 8.10). Dagom era o deus dos filisteus (Jz 16.23; 1 Sm 5.7), e sua imagem consistia em metade forma de homem e metade forma de peixe. Rá era o deus- -sol, dos egípcios, e Sin, o deus-sol dos babilônios. O touro, por exemplo, era um símbolo do Egito: "Por que o deus Ápis fugiu? O seu touro não resistiu" (Jr 46.13, NVI); "Por que foi derribado o teu Touro?" (ARA). Ápis era o boi sagrado do Egito, representação de Ptah, deus da fertilidade de Mênfis. O culto do bezerro no deserto mostra que essa forma de adoração dos egípcios ainda estava no coração do povo (Êx 32.4-6; Sl 106.19, 20). As estátuas de Baal eram colocadas sobre touros. Esse animal era ideal para esses deuses, pois simbolizava força e fertilidade. O touro representava também outros deuses, como Baal. E, durante muito tempo, o povo judeu também se deixou influenciar pelo culto do bezerro (1 Rs 12.28-30; Os 8.5). Esses são alguns dos exemplos de divinização pagã de animais e corpos celestes.
O segundo mandamento divide opiniões ainda hoje, e as interpretações são diversificadas. Os templos católicos romanos estão cheios de imagens de escultura, com fins cúlticos; por outro lado, a comunidade Amish não permite o uso de fotografia nem se deixa fotografar, pois seus membros a interpretam como produção de imagem, o que violaria o segundo mandamento. Contudo, o mandamento aqui não se refere à arte como tal. Essa proibição é específica; refere-se imagem de madeira, pedra ou metal ou forma de algum deus ou deuses das nações: "Não te encurvarás a elas nem as servirás" (Êx 20.5; Dt 5.9).
Essa maneira de entender o segundo mandamento é confirmada ao longo do Antigo Testamento (2 Rs 21.7; Is 40.19, 20; Jr 10.14). Aqui, é uma referência à adoração (Êx 34.13, 17; Dt 27.15). O primeiro verbo tem o sentido de adorar tishthaheweh, ou tishthahãweh,37 "prostrar-se, encurvar, adorar". A Septuaginta traduz por proskyneo "adorar”,38 e o termo aparece 60 vezes no Novo Testamento. O segundo verbo é ‘ãvad,39 "trabalhar, servir". A Septuaginta traduziu por latreuõ,40 "prestar serviço sagrado, servir, adorar", e é o termo que aparece em Mateus 4.10.
O contexto é religioso e remete à proibição de fazer imagens de escultura ou quaisquer figuras e se prostrar diante delas para as adorar. Este mandamento causou profundo impacto em Israel, de modo que a escultura é uma arte que não se desenvolveu entre os israelitas, mesmo para fins meramente culturais. Os grandes museus, como Louvre em Paris, o museu Britânico em Londres, o Neues em Berlim o Metropolitan em Nova Iorque; o museu do Cairo, entre outros, estão repletos de artes de escultura artística e religiosa, bustos de artistas, pensadores e estadistas do Egito, Mesopotâmia, Pérsia, Grécia, Fenícia e Roma, além de estátuas e estatuetas de deuses. No entanto, não existe praticamente nada nos acervos judaicos dessa natureza nesses museus.
As galerias de arte estão completamente fora deste contexto. Trata-se de coleções de manifestações artísticas, e não é a respeito disso que fala o segundo mandamento. Os expositores da Bíblia são praticamente unânimes quanto a esta questão. Há no Antigo Testamento diversos indícios que confirmam esta interpretação. Deus mesmo inspirou artistas entre os israelitas no deserto (Êx 35.30-35) e mandou Moisés levantar uma serpente de metal no deserto (Nm 21.8). O rei Salomão não encontrava artistas em Israel para a decoração do templo e do seu palácio, de modo que contratou escultores e pintores dentre os fenícios (2 Cr 2.13, 14). Ele mandou esculpir querubins na parede e touros e leões para decorar o templo (1 Rs 6.29; 7.29) e o palácio real (1 Rs 10.19, 20). E, quando a serpente de metal que Moisés levantou no deserto veio a ser objeto de culto com o passar do tempo, o rei Ezequias mandou destruí-la (2 Rs 18.4).
O DEUS ZELOSO
"Porque eu, o SENHOR, teu Deus, sou Deus zeloso, que visito a maldade dos pais nos filhos até à terceira e quarta geração daqueles que me aborrecem e faço misericórdia em milhares aos que me amam e guardam os meus mandamentos" (Êx 20.5b-6; Dt 5.9b-10). O adjetivo hebraico qannã’,41 "zeloso", aparece apenas cinco vezes no Antigo Testamento (Êx 20.5; 34.14; Dt 4.24; 5.9;
6.15), associado ao nome divino e/,42 "Deus". As formulações nas cinco passagens diferem em detalhes. Nos dois textos do Decálogo e em Êxodo 34.14, as palavras ’êl qannã ’ são atributos de Javé. A menção dos deuses não acontece em Deuteronômio 4.24; 6.15.
O zelo de Javé consiste no fato de ser ele o único para Israel e não compartilhar o amor e a adoração com nenhuma divindade das nações. Esse direito de exclusividade era algo inusitado na época e único na história das religiões, pois os cultos pagãos antigos eram tolerantes em relação a outros deuses. O termo "zeloso" contém noções de paixão e intolerância; exprime a disposição de Javé abençoar Israel e fazê-lo prosperar, não aceitando um coração dividido. Essa linguagem é representada no relacionamento entre marido e esposa no casamento, na fidelidade (Ct 8.6) e na infidelidade (Os 1.2).
As ameaças sobre as gerações daqueles que aborrecem Javé são para os descendentes que continuam envolvidos no pecado dos pais, as sucessivas gerações que aprenderam os pecados dos seus ancestrais e vivem ainda neles. Este princípio aparece outras vezes no Antigo Testamento além das duas passagens do Decálogo (ÊX34.7; Nm 14.18; Jr 32.18). Deus não permite que filhos inocentes sejam responsabilizados pela maldade dos pais (Dt 24.16; 2 Rs 14.6; Ez 18.2, 3, 20). O verbo "visitar",pãqad,4i em hebraico, indica uma visita, no sentido de cuidar e também de castigar. O profeta Jeremias emprega esse verbo em ambos
os sentidos (Jr 23.2).
A expressão "terceira e quarta geração" indica qualquer número ou plenitude e não se refere necessariamente à numeração matemática, pois se trata de máxima comum na literatura semí- tica (Am 1.3, 6, 11, 13; 2.1, 4, 6; Pv 30.15., 18, 21, 29). O objetivo aqui é contrastar o castigo para a "terceira e quarta geração" com o propósito de Deus de abençoar a milhares de gerações. Outras máximas aparecem no Antigo Testamento com números diferentes: "dois e três” (Jó 33.29); "seis e sete" (Jó 5.19; Pv 6.16); "sete e oito" (Ec 11.2; Mq 6.5), para expressar que a medida da iniqüidade está cheia e não há como suspender a ira divina ou a plenitude de algo positivo.
Os expositores da doutrina conhecida como maldição hereditária costumam usar de maneira isolada uma parte deste mandamento, "visito a maldade dos pais nos filhos até à terceira e quarta geração daqueles que me aborrecem", para fundamentar a sua teoria. Afirmam que, se alguém tem problemas com adultério, pornografia, divórcio, alcoolismo ou tendências suicidas é porque alguém de sua família, no passado, não importa se avós, bisavós ou tataravós, teve esse problema. Nesse caso, a pessoa afetada pela maldição hereditária deve, em primeiro lugar, descobrir em que geração seus ancestrais deram lugar ao diabo. Uma vez descoberta tal geração, pede-se perdão por ela, e, dessa forma, a maldição de família é desfeita. Uma espécie de perdão por procuração, muito parecido com o batismo pelos mortos, praticado pelos mórmons.
Tal pensamento não se sustenta biblicamente; é um erro crasso. A maldição está sobre quem continuar no pecado dos pais, sobre "aqueles que me aborrecem", pontua com clareza o mandamento. Não é o que acontece com o cristão que ama a Deus. Se fomos alvejados pela graça de Deus ainda no tempo da nossa ignorância, quanto mais agora que somos reconciliados com ele? (Rm 5.8-10). Quando alguém se converte a Cristo, torna- -se nova criatura: "as coisas velhas já passaram; eis que tudo se fez novo" (2 Co 5.17).
Para finalizar, convém ressaltar que, no discurso de Moisés em DeuteronÔmio, na revelação do Sinai nenhuma imagem, figura, forma ou representação foi vista pelos israelitas; eles ouviram a voz da Javé vindo do meio do fogo, mas nenhuma representação de figura foi manifestada, unicamente a Palavra (Dt 4.16,23,25). Os ídolos de madeira e de pedra dos cananeus são divindades falsas cuja adoração é terminantemente proibida (Êx 34.13; Dt 12.3; 16.21-22); Javé, entretanto, é real, mesmo que invisível (Cl 1.15; 1 Tm 1.17). "Deus é espírito" (Jo 4.24). Cultuá-lo com a mediação de imagens é colocá-lo no mesmo nível das falsas divindades, uma afronta ao verdadeiro Deus.
Pr. Esequias Soares
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